Em circunstâncias normais, ser um líder não é tarefa fácil e exige preparação. Com a pandemia, então, o que já era desafiador se tornou ainda mais. As mudanças vividas pelo mercado de trabalho por conta do novo coronavírus impactaram diretamente na atuação das lideranças. Se antes o líder, em um escritório, exercia um tradicional sistema de comando e controle, com a ascensão do home office ele precisa estar pronto para dar autonomia e confiar mais na sua equipe de trabalho. Mas a ‘ruptura’ da liderança não para por aí.
Os dias pandêmicos foram e continuam sendo extremamente complexos para a sociedade como um todo. Em decorrência da fácil contaminação da Covid-19 e dos meses de incerteza em relação a como o vírus mudaria nossas vidas, os índices de burnout, depressão, medo, ansiedade e estresse alavancaram. São diversos os estudos que reforçam o quanto a saúde emocional foi abalada devido ao atual momento.
Por consequência, não somente os colaboradores sentiram na pele a brusca mudança em sua rotina pessoal e profissional, como também os líderes, que ao mesmo tempo que passaram a lidar com os problemas trazidos pela pandemia, também precisaram se adaptar e se fortalecer para acolher seu time. Porém, mesmo para o mais preparado dos líderes, pode ser uma autocobrança muito pesada a tentativa em ser forte o tempo todo. A chegada da Covid-19 só reforçou o que já se debatia há alguns anos no mundo corporativo: o líder não pode mais ser um herói.
Líderes que assumem o papel de herói, que tem sempre uma resposta na ponta da língua – seja ela útil ou não -, que não consegue delegar tarefas, que não reconhece erros e que precisa estar (e se sentir) no controle a todo momento só contribuem para que os liderados percam produtividade, confiança e comunicação. Hoje, é preciso mostrar vulnerabilidade.
Todavia, o que exatamente significa poder ‘ser vulnerável’ no mercado de trabalho? E como mudar a mentalidade de ‘heroísmo’ que os líderes buscam? Para falar sobre as mudanças sofridas pela liderança, o RH Pra Você falou com Aline Gomes (foto abaixo), Head Unidade de Negócios Conquer In Company, escola de negócios da nova economia. Confira:
RH Pra Você: De acordo com uma pesquisa realizada nos EUA pela Society for Human Resource Management, 72% dos líderes que supervisionam equipes a distância têm a preferência pelo retorno aos escritórios. O resultado vai na contramão de estudos que mostram que os colaboradores estão mais felizes com o home office e, inclusive, se sentem mais produtivos. Como equilibrar estes opostos para que líder e liderado não tenham eventuais problemas em sua relação e trabalho?
Aline: Não há uma fórmula certa. É necessário observar cada contexto, cenário e modelo de negócios. A pesquisa mostra um descompasso que pode estar na comunicação. Quando falamos do líder ‘herói’, ele realmente quer ter tudo sobre sua vista e poder fazer uma gestão mais minuciosa.
É preciso ter uma boa comunicação para entender quais são os rituais [do líder em seu dia a dia] e quais são os seus objetivos. Com a digitalização e com todos os aprendizados que obtivemos na pandemia, o líder precisa se reinventar no exercício da liderança. Há um exercício de aprendizado nos papéis do líder, do colaborador e no contexto corporativo. O líder precisa olhar para dentro e compreender por que ele deseja que as pessoas retornem, qual será o objetivo do espaço de trabalho – que não será como antes – e questionar se vai ser um espaço mais colaborativo, de rituais de engajamento, de alinhamento de comunicação, de entusiasmo.
A primeira base do pipeline de liderança é a autoliderança. O líder precisa se perguntar se algumas coisas que ele quer podem ser por consequência de falhas em seu processo de gestão. Se as operações cresceram e as pessoas perderam engajamento por estarem dentro de casa, faz sentido trazer de volta as pessoas para criar um equilíbrio melhor, buscarem juntos propósito. Mas sempre reforçando que o trabalho presencial não será da mesma forma que foi antes da pandemia. Os escritórios devem trazer segurança psicológica.
RH Pra Você: E quanto ao colaborador?
Aline: Já em relação ao colaborador, ele precisa refletir sobre o que é importante para que ele se sinta parte do negócio. Deve questionar como será sua troca. O que é de fato a produtividade? Mesmo não tendo muitas vezes o tempo perdido com deslocamento, a rotina está sendo bem administrada? O colaborador também tem rituais de performance e equilíbrio entre vida pessoal e profissional? Há perguntas que o colaborador também deve fazer a si mesmo antes de simplesmente decidir que o home office é a melhor opção.
Para diminuir a lacuna entre o que os líderes desejam e o que os colaboradores querem, é preciso que haja processos claros de comunicação.
RH Pra Você: Muitas vezes, até acredito que na maioria dos casos, o líder incentiva a retomada aos escritórios para agilizar processos. É mais simples ter as pessoas ao lado para entender em quais pontos elas precisam de apoio, para tirar dúvidas, ter acesso rápido a determinadas informações, etc. Só que, por outro lado, a dificuldade de muitos líderes em dar autonomia também é um elemento determinante na tomada de ações. Hoje, a necessidade por comando e controle é um despreparo ou é consequência de uma cultura que não teve na pandemia uma ruptura tão significativa quanto se fala?
Aline: A balança pesa para os dois lados, mas às vezes falta repertório ao líder [que sente necessidade de comando e controle]. Em muitos casos a pessoa é colocada numa posição de liderança e o aprendizado dela é na prática. Virei líder, e agora? Preciso lidar com as minhas próprias questões, como entender o meu perfil de liderança, qual é o meu processo de gestão, de gerar cultura. Muitas vezes o líder espera que o RH assuma papéis que ele deveria assumir.
É preciso preparar e formar bons líderes para que esse líder entenda quais são os níveis de autonomia e delegação. Quando falamos de autonomia, que é o oposto do comando e controle, é preciso tomar cuidado para o indivíduo não delargar. Você não delega só uma atividade, mas a responsabilidade e os riscos. É necessário saber qual é o tamanho do desafio e a habilidade do colaborador naquele momento. O processo exige fluidez e equilíbrio. O líder deve identificar se seu colaborador tem consciência do que precisa ser feito, se ele sabe como fazer.
RH Pra Você: E em meio a isso não se pode ignorar todo o histórico da empresa, não é mesmo?
Aline: As empresas precisaram se reinventar. Talvez a organização tivesse uma cultura de comando e controle, de querer que tudo fosse feito de um único jeito. O exercício da liderança deve trabalhar a ambidestria, que é como eu consigo fazer melhorias contínuas e a base dos meus processos e ao mesmo tempo consigo inovar.
Os executivos também precisam ter a clareza do que é esperado para o negócio. Por isso é importante uma construção baseada em cocriar junto.
RH Pra Você: O peso da cultura organizacional faz com que muitos líderes se sintam pressionados a ter uma postura de comando e controle. Além disso, hoje nós temos o agravante de muitas pessoas se tornarem líderes dentro do home office pandêmico, ou seja, você nunca foi líder e precisa administrar pessoas a distância que estão com o emocional abalado, com receio de deixar as crianças na escola e afins. Como preparar as pessoas para um cenário tão fora do normal?
Aline: Um grande aprendizado é trazer o colaborador para o centro. Pensar nele e construir com ele. É muito importante ter o time ao lado, mostrar transparência. Na Conquer, nós deixamos de lado o ambiente presencial na pandemia e treinamos toda a parte de metodologia. Construímos um novo negócio. Aprendemos que temos que ter vulnerabilidade e trabalhar nossa segurança psicológica. Novos temas começaram a fazer parte das discussões. Muitas vezes o líder vai fazer um checkpoint básico com o colaborador e o seu funcionário precisa falar de luto, por exemplo.
O gestor precisa trabalhar suas emoções, ser empático. O papel do RH foi fundamental no processo de trazer novas falas, como burnout, crises de ansiedade, problemas pessoais em geral. Por isso tudo é importante para o líder ter repertório. É preciso deixar de ser aquele líder ‘sabe-tudo’ e crescer em um ambiente de antifragilidade. O papel do líder hoje está em trabalhar na zona de curiosidade e aprendizado, aprender a aprender. Está tudo bem não saber tudo. O grande ponto não é ter todas as respostas, mas construir junto com pessoas que querem fazer parte desta construção.
Há alguns anos atrás a figura do líder sabedor era a mais presente. Até porque, inconscientemente, há também a questão do ego, do poder. Você sente prazer em responder como líder, mas quando nota que não tem controle precisa ter rituais claros, conhecer as métricas, entender seu papel. O líder deve trazer visão às pessoas.
RH Pra Você: Talvez uma grande ironia seja o fato de que, por mais que o líder ‘invulnerável’, ‘sabe-tudo’, possa incomodar às vezes, muitos colaboradores, por não conhecerem outro tipo de liderança, podem desconfiar de um perfil diferente. Então, quando nós falamos da vulnerabilidade, o que exatamente é esse conceito pensando no mercado de trabalho? E como ‘exercê-la’?
Aline: O primeiro ponto de todo profissional é mapear como está, como funciona. É um escaneamento sobre seu estilo, sua identidade profissional. Quais são minhas competências, motivações e não-negociáveis?
A vulnerabilidade tem quatro pilares. Dois são relacionados ao autoconhecimento e às emoções. Em um contexto de estresse você é reativo ou se segura um pouco mais? Por outro lado, quando falamos dos outros fatores, os externos, precisamos trabalhar a gestão de relacionamentos e a empatia. Ao olhar para todas as esferas você começa a trabalhar sua vulnerabilidade. Pergunte-se como é a sua relação com o outro, como é possível gerar conflitos construtivos com as pessoas. Há muito atrito ou consigo entender o ponto de vista do outro sob sua perspectiva? Consigo gerenciar minhas emoções?
Quando você olha para seu autoconhecimento e sua autogestão, entende o que é, de fato, ser vulnerável. Existe uma confusão de achar que ser vulnerável é ser vítima, é ser um coitado. E não é. O que estamos falando é de uma questão fundamental para gerar engajamento que é a confiança. Para construí-la, é preciso ter uma troca genuína, verdadeira.
O time percebe quando há a abertura para uma construção conjunta e não todas as respostas centradas em um único indivíduo. Se o líder não se coloca vulnerável, o time também não vai se colocar e vai seguir a mesma postura. 70% do nível de engajamento, segundo uma pesquisa da Gallup, é atribuído à qualidade do líder. Uma outra pesquisa diz que 50% dos colaboradores vão embora por conta do desejo de se livrarem do gestor. São números que mostram o quão essencial é que o papel da liderança seja desconstruído.
Fonte: Rh pra Você