Entenda como a história das metrópoles Paris e Londres é fundamental para entendermos nossos hábitos de consumo atuais
Para compreender com precisão qualquer fenômeno do mundo hoje temos que olhar pra trás, recorrer ao retrovisor da história e, dessa forma, encontrar as bases essenciais que justificam os ocorridos dos dias que vivemos. Para se entender a origem das marcas, por exemplo, não é diferente. Temos que voltar há cerca de 200 anos, por volta de 1800, século XIX. Naquela época, as duas cidades mais populosas do planeta eram Paris e Londres. Todo mundo queria estar lá por uma série de razões mercantis, culturais, sociais e econômicas.
Só́ que essas duas metrópoles naquela época não eram como são hoje, obviamente. Londres ainda se reconstruía de um incêndio que destruirá a cidade tempos atrás. Já́ Paris era uma cidade caótica, imunda, feia, apertada, mal ventilada, fedorenta, suja, esgotos a céu aberto, mal iluminada, pessoas atropeladas por carruagens e havia um problema sério de saúde pública na capital francesa. Mas, mesmo assim, por uma série de razões, eram cidades muito magnéticas e todo mundo se atraia para estar lá́.
Até́ que, em meados do século XIX, Napoleão III contrata um novo prefeito para Paris, o famoso urbanista Barão de Hassan, que provoca uma revolução na cidade. Georges-Eugène Haussmann foi um advogado, servidor público, político francês e, a partir do lindíssimo Arco do Triunfo, planejou uma nova cidade e literalmente rasgou Paris em doze largas avenidas. Desse modo, fez nascer uma nova cena urbana diante dos olhos das pessoas.
Novas ruas, avenidas largas, calcamentos imensos, largos espaçosos, lindos jardins, bulevares, entre outras transformações urbanas e arquitetônicas. Na famosa Avenida de Champs Ulysses, as pessoas podiam caminhar e desfilar pelas calcadas (com distância de 70 metros de um lado da avenida até́ o outro). A moda ganha uma potência nesse momento e democratiza-se a preocupação com o que se veste e como se porta. Nasce o que conhecemos hoje como modernidade, nasce a cidade moderna.
Muitos dos aspectos e hábitos sociais que temos hoje no nosso dia a dia, tem com gênese essa Paris do século XIX. Por que saímos à noite para jantar, vamos em um restaurante e pedimos um cardápio para um garçom? Esse hábito nasce em Paris. A forma como nos vestimos, nos portamos ao sentar em uma cadeira, a forma como as mulheres jogam o cabelo de lado, tudo isso tem Paris como sua pedra de toque.
Ali ao lado, em Londres, uma revolução industrial avassaladora ganha seus alicerces, e muda completamente a forma como o homem se apropria do processo produtivo industrial. Muitas coisas nascem em Londres, o hábito de nossa vida em apartamento, o surgimento de edificações em concreto armado ganha força nessa época, além de outras transformações capitaneadas pela engenharia humana.
O consumo nasce nesse momento. E entenda consumo aqui não como o ato da compra ou algo relacionado a adquirir coisas. O consumo como um sistema central de nossa vida cotidiana que classifica pessoas, que determina nossas semelhanças, diferenças, que classifica produtos, serviços, mercadorias. O consumo, sim, como um fato central de nossa sociedade. O consumo aqui como um modulador de nossas identidades. O consumo não de bens, mas o consumo de modos de ser e estilos de vida. Consumimos o tempo todo, hoje. Até mesmo negar as marcas é um certo tipo de consumo. Consumimos sensações. Consumimos a quarentena dos outros no Instagram Stories. Consumimos o pão, a ioga, o home schooling. Consumimos modos de ser, consumimos álcool, youtube etc.
O vidro surge nessa época e as lojas com vitrines nascem nesse momento histórico. Os três grandes magazines de Paris inauguram-se e estão lá́ até́ hoje no mesmíssimo endereço: a Princeps, o Le Bon Marché e as Galerias Lafayette, que merece um olhar mais profícuo de nossa parte. Mais precisamente no ano de 1893, Theophil Balder e seu primo Alphonse Kahn, ambos nascidos na região da Alsácia, inauguraram uma loja cheia de novidades na esquina do réu La Facete e da Chaussée d’Antin, em Paris.
A sua localização privilegiada, perto da Opera Garnier de Paris e das Grandes Boulevards, assim como um novo conceito de compras que estimulava os consumidores a caminharem ao longo de seus corredores, secções, contribuíram para que a loja se tornasse algo marcante naquele momento histórico. Já́ no ano de 1896, eles cresceram ainda mais e adquiriram todo o prédio n°1 do réu La Facete. No ano de 1905, os prédios n°38, 40 e 42 da Boulevard Hassan e n°15 do réu de lá Chaussée d’Antin também foram obtidos e incorporados à loja. Renomados arquitetos e engenheiros da época desenharam uma cúpula de vidro e acho e escadas ao estilo Art. Nouveau cuja construção terminou em 1912.
Joga no Google e dê uma olhada nesses espaços absolutamente suntuosos e vistos como verdadeiros templos do consumo. As Galerias Lafayette ainda são hoje a mais importante e mais emblemática loja de departamentos da cidade de Paris, e tem como slogan: “Ice, lá monde vit. plus fort.” (“Aqui, a moda vive mais forte.”). O conceito da loja, o conceito do shopping, surge nesse momento. A publicidade nasce nesse instante, com os primeiros cartazes afixados nas paredes com as peças de teatro de Paris. E, é claro, as marcas nascem nesse momento. As marcas comercialmente falando. As pessoas sentiram necessidade de criar aspectos identitários e discursivos para se diferenciar e se comercializar produtos, bens e mercadorias.
Do outro lado do Canal da Mancha, no início do século passado em 1909, inaugura-se em Londres a Selfridge’s, a primeira grande loja de departamento no Reino Unido, mais precisamente na Oxford Street. Ali criou-se o hábito de fazer compras como algo mais divertido e uma espécie de forma de lazer, e não apenas uma tarefa cotidiana. Isso levou a transformar a loja de departamento num potente marco social e cultural que fornecia um espaço público onde as mulheres, por exemplo, podiam se sentir bem, confortáveis e cuidar delas mesmas.
Para enaltecer a importância da criação de um ambiente realmente mais acolhedor, a Selfridge’s colocava as mercadorias à vista dos fregueses para que eles pudessem avaliar com os seus próprios olhos. Eles inovaram também colocando o balcão de perfumes (sempre um dos mais rentáveis) para a entrada da loja. Claro que essas técnicas de visual merchandising foram adotadas por uma boa parcela de lojas de departamento mais modernas em todo o mundo. E ainda hoje é o vemos em lojas do cotidiano de nosso varejo brasileiro como C&A, Renner e Riachuelo. De novo, tudo isso tendo como gênese Paris e Londres no século passado.
Muitos dos hábitos cotidianos e de nossa vida nascem nessa época. Por que temos um banheiro dentro de nosso quarto hoje em dia e vivemos em uma suíte? Essa prática arquitetônica social de espaços e ambientes nasce em Paris. Até́ mesmo o consumo de drogas nasce na capital inglesa nesse momento histórico, o consumo de haxixe, particularmente falando, e o surgimento de pessoa entorpecidas andando pelas ruas. O sentimento de se caminhar pela rua e perceber que alguém está te observando também nasce aqui. A consumo de moda cresce e se democratiza nesse momento.
O próprio olhar do clássico cidadão parisiense, que Walter Benjamin bem chamou de flanêur em suas obras, aparece nesse momento histórico. O flanêur significa “errante”, “vadio”, “caminhante” ou “observador”. Flanarei é o simples ato de passear, caminhar, vagar pelas ruas. A flanela era, antes de tudo, um personagem, um tipo literário do século XIX, na Franca, sendo essencial usá-ló para se descrever qualquer imagem das ruas de Paris dessa época. Esse termo carregava um rico aspecto de significados correlatos: o homem do lazer, um certo tipo de malandro, a explorador da cidade e o conhecedor da rua. E foi Benjamin, baseando-se na poesia de Charles Baudelaire, que fez desse ator-social um objeto central de interesse acadêmicos no século XX, como um emblemático arquétipo da experiência moderna.
Passados todos esses períodos, hoje em dia, dizem que houve uma certa implosão da modernidade, chegamos aos anos 2000 quando se pode afirmar que temos mais formas de comunicação do que em qualquer outro momento da história. Alguns autores realmente acreditam que a modernidade acabou e vivemos hoje a chamada pós-modernidade, um novo momento diante de nossos olhos.
Aliás, é tarefa árdua compreender a época vigente e termos clareza do que realmente vivenciamos ao nosso redor. O peixe só dá conta que vive dentro da água quando está fora dela morrendo sem respirar. Somos peixes dentro da água, e estamos no meio do turbilhão vendo tudo acontecer. No entanto, muito mais do que simplesmente classificar os novos ambientes de aceleração, fulgurância mercantil e produção midiática, devemos tomar essa produção como ponto de partida para compreender a sociedade contemporânea e, é claro, o consumo, esse elemento central que modula e modela nossos modos de ser.
Fonte: administradores.com