A transformação digital também afetou os resultados da liderança? Sofia Esteves fala sobre as mudanças no legado dentro das empresas.
Quem acompanha as atualizações sobre os impactos ambientais já deve ter escutado a história de que parte dos desastres que vivenciamos hoje são heranças (muito ruins) de negligências no passado. Eu sei, a lei da causa e efeito não é nova, mas o foco aqui é o espaço de tempo entre uma ação e a sua consequência.
Segundo o futurista e antropólogo norte-americano Jamais Cascio, os efeitos do aquecimento que estamos sentindo no presente tem a ver com o carbono colocado na atmosfera na década de 1970. De acordo com o especialista que cunhou o novo acrônimo BANI (Brittle, Anxious, Nonlinear e Incomprehensible, ou, em português, Frágil, Ansioso, Não linear e Incompreensível) – uma definição atualizada para o mundo no qual vivemos -, isso significa que poderíamos parar de colocar qualquer carbono adicional agora, neste exato segundo, e continuaríamos a sentir o efeito do aquecimento por mais algumas décadas.
Refletir sobre os efeitos prolongados de uma ação e, por consequência, do tempo também maior para, digamos, “arrumar a bagunça” me fez pensar sobre o quanto o que nós vivemos não é fruto de uma visão voltada ao imediatismo.
Será que, às vezes, ignoramos sinais de alerta porque eles projetam um futuro que julgamos ser muito distante? Será que, sem querer, nos acostumamos a olhar para (ou nos preocuparmos com) os efeitos que estão aqui e agora? Será que encurtamos o alcance da nossa visão? E, se as respostas para essas perguntas se inclinarem mais para um aceno afirmativo com cabeça, o que significa quando surgem pautas como a do ESG, que pressupõem tomadas de decisão imediatas, mas que, talvez, não tenham efeitos tão instantâneos assim?
Os questionamentos podem parecer mera conversa filosófica, mas quando Cascio diz em uma entrevista que “haverá um lapso entre fazer a coisa certa e obter os resultados certos”, pensei no quanto o nosso mindset atual está pronto para isso. Colocando em termos práticos: o quanto nós, como líderes, estamos preparados para tomar decisões pautadas em pilares ambientais, sociais e de governança (três conceitos representados pelas letras da sigla ESG), com seus resultados mais substanciais de médio e longo prazo. E se boa parte do que você plantar na sua empresa – e no seu entorno porque, lembre-se, ESG diz respeito também a esse efeito em rede – for colhido pelo sucessor do seu sucessor? Como você se sentiria?
Não se trata de um apelo à vaidade, como se um líder não pudesse conceber a ideia de que parte do seu legado será desfrutado mais no futuro. Porém, nos últimos tempos, nos disciplinamos a não focar apenas – ou até focar menos – no planejamento de dez, quinze, vinte anos.
A transformação digital traduzida pelo conceito já um pouco datado de mundo VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity, ou, em tradução para o português, volátil, incerto, complexo e ambíguo) impôs uma revisão também do tempo da estratégia, encurtando as projeções para ganhar agilidade nas respostas e nas adaptações necessárias às intensas mudanças. Isso, claro, trouxe implicações para o legado da liderança, o qual passou a se tornar mais visível, palpável e latente em espaços de tempo menores. A oportunidade de ver o jardim florescer, convenhamos, é muito prazerosa!
Só que os desafios atuais parecem exigir um prazo maior. Da mesma forma que parar com a emissão de gás carbônico neste instante não trará resultados, assim, de bate e pronto, a liderança das empresas de hoje podem não ocupar uma posição de comando quando suas tomadas de decisão apresentarem efeitos mais amplos e visíveis. E aí que não basta planejar o futuro, mas é necessário também preparar os sucessores para dar continuidade a uma jornada longa, porém sustentável.
Falar em plano de sucessão pode passar a sensação de que não há nada novo sob o sol, mas não se engane. A nova passagem de bastão pede não só a troca de conhecimento, como o reforço da necessidade de desenvolvimento de uma liderança mais complexa e “multidimensional”. Um gestor ou uma gestora com um entendimento mais amplo sobre o negócio, a estratégia e o significado de sustentabilidade de uma empresa. Esse rito de passagem faz um convite também ao desprendimento, uma postura altruísta que abre mão da sua colheita para entregar o cultivo em desenvolvimento para outro.
Fonte: Exame