O MagLev-Cobra usa a força magnética entre ímãs de terras-raras e supercondutores para se deslocar sem tocar a via
O Brasil dá mais um passo no desenvolvimento de um trem de levitação magnética (maglev). Esses veículos futuristas, ainda raros no mundo, deslocam-se silenciosamente, sem emissão direta de poluentes – são eletrificados –, suspensos a poucos centímetros da via. Até o final do ano, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) planejam iniciar uma nova fase de testes do primeiro veículo experimental em escala real do mundo dotado da tecnologia de levitação supercondutora (SML). O deslocamento do vagão, com 4,3 metros (m) de comprimento por 2 m de largura e capacidade para 20 passageiros, se dará em uma via elevada de 200 m, suspensa em relação ao solo, entre os Centros de Tecnologia 1 e 2 da UFRJ, na Ilha do Fundão, na capital fluminense.
Apenas Japão, China e Coreia do Sul têm veículos maglev operacionais; a pesquisa na área também ocorre na Alemanha, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra, na Rússia e na Itália. O sistema SML é uma das três tecnologias de levitação magnética promissoras para o transporte de massa. As outras duas, levitação eletrodinâmica e eletromagnética, são mais antigas e já estão em operação. O projeto do MagLev-Cobra, nome do veículo brasileiro, é liderado por professores do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ.
Realizada em parceria com a Escola Politécnica e o Instituto de Física da mesma universidade, a pesquisa teve início em 1998 (ver Pesquisa FAPESP no 157) e já recebeu cerca de R$ 20 milhões de diversas fontes, entre elas a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Três patentes já foram concedidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Um primeiro protótipo do veículo, construído de forma artesanal e bem menos sofisticado do que o modelo atual, operou experimentalmente entre 2015 e 2020 na mesma via de 200 m. “Vinte mil pessoas foram transportadas no período. Com a pandemia, o projeto foi paralisado por falta de recursos”, conta o engenheiro eletricista Richard Magdalena Stephan, do Programa de Engenharia Elétrica da Coppe, coordenador do desenvolvimento do MagLev-Cobra. Os resultados do primeiro ano de teste foram tema de artigo publicado em 2016 no periódico científico IEEE Transactions on Applied Superconductivity.
A nova versão do trem fluminense foi fabricada pela empresa gaúcha Aerom, responsável pela instalação do aeromovel de propulsão pneumática que conectará o Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, ao trem metropolitano que faz a ligação com a capital. “O protótipo atual do MagLev-Cobra é fruto de uma produção industrial, e não artesanal. Se for preciso construir um segundo veículo igual, conseguiremos fazer isso. Com o anterior, seria impossível”, esclarece o engenheiro.
O veículo foi aprimorado e ganhou novas funcionalidades, como operação autônoma, sem condutor – a tecnologia driveless foi criada pela Aerom. Também conta com sistema automático de abertura e fechamento de portas, refrigeração mais eficiente e melhor isolamento térmico e acústico, segundo seus desenvolvedores.
Estabilidade na levitação
A tecnologia de levitação supercondutora empregada no MagLev-Cobra aproveita as propriedades de materiais produzidos apenas no fim do século XX. Os trens transportam uma cerâmica constituída de óxido de ítrio, bário e cobre, e os trilhos são ímãs de terras-raras – ligas de neodímio-ferro-boro –, conforme explicam Stephan e colegas em trabalho divulgado na revista Eletronics, em 2020. Resfriada com nitrogênio líquido a 196 graus Celsius (oC) negativos, a cerâmica se torna supercondutora e expulsa o campo magnético produzido pelos ímãs. O diamagnetismo – a tendência de expulsar o campo magnético – gera uma força entre o supercondutor e o ímã, e é essa a força que faz o trem levitar.
O veículo circulará sobre uma via elevada contínua. “Se for ao nível do solo, terá que ser em uma via segregada”, diz Stephan. Em substituição a cada roda do trem comum, há um criostato, dispositivo térmico na forma de caixa retangular que refrigera a cerâmica. Cada criostato tem 40 centímetros (cm) de comprimento por 15 cm de largura e 10 de altura. São empregados oito criostatos por vagão, quatro de cada lado.
“A repulsão entre materiais supercondutores de alta temperatura [HTS] e ímãs de terras-raras gera uma força estável de levitação, não facilmente rompida”, explica o professor da Coppe. Com isso, um comboio de veículos maglev com tecnologia SML pode enfrentar de forma estável até mesmo curvas fechadas. “Essa propriedade permitirá ao veículo serpentear por vias elevadas em áreas urbanas de forma segura.”
O MagLev-Cobra, que na versão final será composto por vagões articulados, deverá levitar a 1 cm da via. Sua tração será realizada por um motor elétrico de indução linear instalado no centro da via, de uma ponta a outra. Parte dele, a armadura, é instalada no trem; a outra, um rotor de motor elétrico retificado, é implantada ao longo de toda a via, alinhado com a armadura – normalmente os motores elétricos são dispostos circularmente em torno de um eixo e operam de forma rotativa. Um sistema de alimentação fornece energia para o motor, que funciona através de um contato deslizante entre a armadura e o rotor. Como o sistema de levitação não gera atrito, a tração tem de lutar apenas contra o atrito com o ar, que é reduzido a baixas velocidades. Assim, o consumo energético é pequeno. A energia para abastecer o motor do MagLev-Cobra será gerada por placas solares.
O custo de implementação da infraestrutura do MagLev-Cobra é calculado por Stephan em R$ 40 milhões por quilômetro (km) em cada sentido – são necessários dois sentidos, ida e volta –, em valores de 2022. “É compatível com o outras infraestruturas de transporte urbano”, afirma o engenheiro, citando como exemplo o veículo leve sobre trilhos (VLT) que entrou em operação no Rio de Janeiro em 2016 a um custo de R$ 40 milhões por km/sentido.
A nova fase de testes do MagLev-Cobra deve durar pelo menos um ano. “Nossa expectativa é de que o experimento desperte interesse dos setores público e privado para a construção de uma via maior, de 1 km de extensão”, afirma Stephan. Essa nova estrutura será dotada de curvas de raios de 50 m e aclives de até 15%. Nela, o veículo poderá atingir 70 km/hora – o protótipo atual, por causa da distância curta da via, 200 m, vai se deslocar a no máximo 12 km/h. A estimativa de custo dessa última fase é de R$ 60 milhões. “Após esses ensaios, e se tudo correr bem, estaremos prontos para uma operação comercial”, projeta.
Para o engenheiro civil Rômulo Dante Orrico Filho, ex-subsecretário municipal de Transportes do Rio de Janeiro e professor do programa de Engenharia de Transportes da Coppe, mas sem participação no projeto, o MagLev-Cobra apresenta vantagens significativas, o que justificaria apoio e investimento público para sua implementação.
“O custo operacional, que envolve gasto de energia e manutenção, é mais baixo do que o de veículos de rodas sobre trilho”, compara o engenheiro. Outra vantagem, destacada por Orrico Filho, é sua leveza, por dispensar trilhos e rodas de aço. “A infraestrutura para sustentar a via é mais leve. Com isso, os pilares de sustentação podem ser mais finos e mais adequados à realidade urbana”, argumenta.
O engenheiro eletricista José Roberto Cardoso, coordenador do Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado (LMAG) do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétricas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), avalia que o MagLev-Cobra é uma alternativa única de transporte em baixa velocidade com levitação magnética. “O projeto é original e evoluiu bastante nos últimos 20 anos. A vantagem da tecnologia SML é a leveza do veículo. Ele é ideal para ser utilizado em trajetos dentro das cidades, em aeroportos e entre municípios próximos”, afirma.
Experiência chinesa
Os estudos sobre levitação magnética aplicada ao transporte de passageiros remontam ao início do século XX. Em 1912, o francês Emile Bachelet (1863-1946) depositou a primeira patente de levitação eletrodinâmica (EDL). A levitação eletromagnética (EML) foi proposta pelo alemão Hermann Kemper (1892-1977) em 1934. Foi apenas nos anos 1970 que começaram as primeiras pesquisas para desenvolver trens maglev, na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos.
O conhecimento científico que permite a levitação com a tecnologia SML é mais recente, do fim dos anos 1980. Além do Brasil, a pesquisa sobre veículos maglev que empregam essa tecnologia se concentra principalmente na China e na Alemanha. A maioria dos projetos está em fase de ensaios laboratoriais. O protótipo mais avançado foi testado na Southwest Jiaotong University (SWJTU), em Chengdu, na China, em 2021 – seis anos após o início dos ensaios do protótipo artesanal do MagLev-Cobra. O projeto chinês difere do brasileiro em um ponto: visa ao transporte de alta velocidade, entre cidades, enquanto o da UFRJ tem foco em trajetos urbanos.
O teste em escala real do protótipo da SWJTU aconteceu em uma via de 165 m. De acordo com o engenheiro mecânico Zigang Deng, líder da equipe de tecnologias HTS maglev na SWJTU, uma nova linha de testes de 1,6 km está sendo planejada para entrar em operação em 2025. “Queremos atingir velocidades superiores a mil km/h”, informou Deng a Pesquisa FAPESP.
O projeto, esclarece o pesquisador, tem apoio do governo chinês e parcerias estão sendo desenvolvidas com outras universidades e empresas estatais do país. “A tecnologia de operação do maglev SML em baixa velocidade está totalmente desenvolvida e foi demonstrada pela equipe da UFRJ”, constata Deng. Por isso, diz ele, a SWJTU optou por trabalhar em um projeto focado em aplicações em alta velocidade.
Forças repulsivas e atrativas
Na tecnologia pioneira de levitação eletrodinâmica, os ímãs são transportados pelo trem e os trilhos são condutores normais. Para que a força repulsiva seja suficiente para sustentar os vagões, os trilhos precisam ficar sujeitos a um campo magnético que varia rapidamente. Por isso, a levitação só aparece quando a velocidade do trem é relativamente alta.
A primeira linha EDL de demonstração e testes foi implementada em 1997 no Japão. Uma via de 42,8 km foi construída em 2013 em Yamanashi, localizada entre Tóquio e Osaka, também para ensaios. Dois anos depois, o veículo maglev EDL alcançou o recorde mundial de 603 km/h. “A levitação eletrodinâmica é uma tecnologia voltada para veículos de alta velocidade; não é adequada para trajetos urbanos. A levitação só ocorre após atingir 100 km/h”, esclarece Stephan. A primeira linha comercial de alta velocidade está prevista para operar entre Tóquio e Nagoya até 2030.
A outra tecnologia, de levitação eletromagnética, utiliza as forças atrativas do magnetismo entre eletroímãs instalados nos veículos, em lugar das rodas, e materiais ferromagnéticos, nas vias. É indicada tanto para trajetos longos, nos quais o trem atinge maiores velocidades, quanto para percursos urbanos. Desde 2003, um veículo de alta velocidade construído com tecnologia alemã percorre os 30 km entre o Aeroporto Internacional de Shanghai-Pudong e Lujiazui, em Shanghai, na China, registrando até 450 km/h – foi a primeira operação comercial de um veículo de levitação magnética de alta velocidade.
Além dela, existem hoje cinco operações maglev urbanas, com extensões que variam de 6 a 18 km, sendo três na China, uma no Japão e uma na Coreia do Sul, todas com o sistema EML. “Por conta das altas velocidades que atingem, os trens de levitação magnética, seja EML ou EDL, podem se tornar no futuro uma opção para ligar a Ásia e a Europa por terra”, cogita Cardoso, da USP.
Um artigo científico escrito por Stephan e Deng e publicado em 2023 em Modern Transportation Systems and Technologies destaca as vantagens do sistema SML em comparação à tecnologia EML, também destinada ao transporte urbano. “A levitação eletromagnética depende de fornecimento de energia de forma ininterrupta. Qualquer falha no fornecimento de eletricidade leva ao colapso do sistema de levitação”, diz. Como consequência, os veículos EML demandam sensores e sistemas de backup energético. Já na tecnologia SML, segundo o pesquisador, para manter o trem em levitação só é necessário reabastecer uma vez por dia o criostato com nitrogênio líquido, um produto acessível.
Outra diferença: o sistema EML utiliza pesados eletroímãs instalados nos veículos, enquanto os criostatos carregados de supercondutores do sistema SML são leves. A terceira distinção significativa entre as duas tecnologias se dá no chamado aparelho de mudança de via. Nos maglev EML, para um veículo trocar de via, esta precisa ser deslocada para conduzir o maglev para a nova direção, exatamente como ocorre com o monotrilho de São Paulo. No maglev SML, em um entroncamento, basta substituir os ímãs da via por eletroímãs e energizar na direção que se deseja seguir, cortando a eletrificação de um ramal e mantendo no outro. “São essas três características que geram leveza, praticidade e confiabilidade aos sistemas SML”, explica Stephan.
Fonte: Giz Modo