Quando soube que minha candidatura a uma vaga de emprego estava sendo avaliada por um computador e não por um ser humano, fiquei um pouco estressada.
Sou jornalista e tinha acabado de me candidatar a um novo emprego. Durante a primeira parte do processo seletivo, fui convidada a jogar vários jogos online simples, no conforto da minha própria casa.
Os jogos incluíam contar rapidamente o número de pontos em duas caixas, inflar um balão antes que explodisse para ganhar dinheiro e vincular emoções a expressões faciais. Em seguida, um sistema de software de inteligência artificial avaliou minha personalidade e decidiu se me aprovaria ou rejeitaria.
Não havia a supervisão de nenhum ser humano.
E eu me perguntei: é justo um computador por si só aceitar ou rejeitar candidatos a uma vaga de emprego?
Bem-vindos ao mundo em rápida expansão do recrutamento com inteligência artificial.
Do McDonald’s ao JP Morgan
Os recrutadores têm usado inteligência artificial na última década, mas essa tecnologia foi bastante aperfeiçoada nos últimos anos.
A demanda aumentou drasticamente desde a pandemia, graças à sua conveniência e resultados rápidos em um momento em que a equipe pode não estar disponível devido à covid-19.
O software de inteligência artificial que me testou para a vaga foi fornecido por uma empresa sediada em Nova York, nos Estados Unidos, chamada Pymetrics.
As perguntas e respostas foram elaboradas para avaliar vários aspectos da personalidade e inteligência de um candidato, assim como sua tolerância ao risco e a rapidez com que responde a diferentes situações.
Ou, como diz a Pymetrics, “para medir de forma justa e precisa os atributos cognitivos e emocionais, em apenas 25 minutos.”
Seu software de inteligência artificial agora é usado na etapa inicial de processos seletivos de várias multinacionais, incluindo McDonald’s, o banco JP Morgan, a empresa de auditoria e consultoria PWC e o grupo de alimentos Kraft Heinz. Se você passar, segue para uma entrevista com um recrutador humano.
“Trata-se de ajudar as empresas a processar um grupo muito maior (de candidatos) e obter sinais de que alguém terá sucesso em um trabalho”, diz Frida Polli, fundadora da Pymetrics.
“Todo mundo quer o emprego certo e quer contratar a pessoa certa. Usar esses sistemas de inteligência artificial de forma inteligente é uma vantagem para todos”.
Outro fornecedor de software de recrutamento com base em inteligência artificial é a HireVue, com sede em Utah, nos EUA. Seu sistema de inteligência artificial grava vídeos de candidatos respondendo a perguntas de entrevistas por meio da webcam e do microfone de um laptop.
Essa gravação é então convertida em texto, e um algoritmo de inteligência artificial o analisa em busca de palavras-chave, como usar “eu” em vez de “nós” em respostas a perguntas sobre trabalho em equipe.
A empresa de recrutamento pode então optar por permitir que o sistema HireVue rejeite candidatos sem uma dupla verificação humana ou fazer com que o candidato avance no processo seletivo para uma entrevista por vídeo com um recrutador real.
A HireVue conta que até setembro de 2019 havia realizado um total de 12 milhões de entrevistas, das quais 20% foram por meio do software de inteligência artificial. As 80% restantes foram realizadas com um entrevistador humano do outro lado da tela de vídeo.
Este número agora aumentou para 19 milhões de entrevistas, com a mesma divisão percentual.
A empresa começou a oferecer entrevistas de inteligência artificial em 2016. Entre seus usuários, estão a desenvolvedora de chips de computador ARM e a empresa de serviços de viagem Sabre.
Um relatório de 2019 afirma que o crescimento do uso de inteligência artificial é tamanho que substituirá 16% dos empregos no setor de recrutamento até 2029.
‘Um processo justo’
Kevin Parker, CEO da HireVue, diz que a inteligência artificial é mais imparcial do que um entrevistador humano.
“O desejável é ter um processo justo, e a inteligência artificial pode ajudar a avaliar todos esses candidatos de uma forma muito consistente”, afirma ele à BBC.
A Pymetrics também afirma que seu sistema garante uma maior equidade e que “cada algoritmo é rigorosamente testado quanto a vieses”.
Polli acrescenta que é melhor do que se basear simplesmente no currículo do candidato.
“Um currículo só pode fornecer informações sobre as habilidades técnicas de alguém (competências que podem ser adquiridas por meio de treinamento e experiência profissional), mas as pesquisas e o bom senso nos dizem que as habilidades pessoais (sociais, de comunicação e outras) também contribuem para o sucesso no trabalho”, explica.
Vieses e desafios
Quer dizer então que o recrutamento por inteligência artificial não é motivo de preocupação? A gigante do varejo de compras online Amazon não pensa assim.
Em 2018, foi amplamente divulgado que a empresa havia abandonado seu próprio sistema porque era preconceituoso em relação às mulheres que disputavam cargos.
A agência de notícias Reuters informou que o sistema de inteligência artificial da Amazon “ensinou a si mesmo que os candidatos do sexo masculino eram preferíveis”, porque eles costumavam ter mais experiência no setor de tecnologia no currículo.
A Amazon não quis comentar na época.
James Meachin, da consultoria britânica de psicologia empresarial Pearn Kandola, é especialista no setor de recrutamento. Ele diz que os sistemas de inteligência artificial ainda têm uma série de desafios.
“O primeiro passo para selecionar candidatos é analisar corretamente o que eles dizem ou escrevem. Nesse nível básico, os assistentes de voz do Google, Amazon e Apple ainda não conseguem entender o que as pessoas estão dizendo. Por exemplo, sotaques escoceses representam um desafio, assim como palavras ou frases incomuns”, diz o especialista.
“Se um sistema de inteligência artificial pode transcrever com precisão o que está sendo dito, o segundo e maior desafio é detectar o significado embutido nessas palavras: a semântica, as nuances e o contexto. Isso é algo que os sistemas de inteligência artificial podem não entender. Por outro lado, um ser humano que escute a conversa compreenderá intuitivamente o que se quer dizer.”
Sandra Wachter, pesquisadora de inteligência artificial da Universidade de Oxford, no Reino Unido, diz: “Eu ficaria muito preocupada se as pessoas dissessem que o uso de inteligência artificial no recrutamento empresarial só traz benefícios.”
“Todo aprendizado automático (machine learning) funciona da mesma maneira básica: revisa uma grande quantidade de dados e encontra padrões e semelhanças.”
“Portanto, na contratação, analisar candidatos aprovados no passado são as informações que você tem. Quem eram os CEOs no passado, quem eram os professores de Oxford no passado? Os algoritmos de recrutamento vão selecionar mais homens.”
“O risco é que, se não houver testes rigorosos, as mulheres e negros sejam negligenciados.”
Linguagem inclusiva
Para ajudar empresas e organizações a evitar vieses em seus sistemas de inteligência artificial, não apenas na contratação, mas em todas as suas operações comerciais, Wachter escreveu um artigo sobre o tema no ano passado. Suas propostas foram adotadas pela Amazon.
Há, no entanto, maneiras mais benignas de usar a inteligência artificial no setor de recrutamento.
Veja, por exemplo, o caso da Textio, com sede em Seattle, nos EUA. Seu software utiliza inteligência artificial para ajudar as companhias a escreverem anúncios de emprego que atraiam uma ampla variedade de candidatos, tornando a linguagem mais inclusiva e fácil de entender.
Este sistema está sendo usado em empresas e organizações no mundo todo, do Banco Mundial ao Dropbox, Spotify e Tesco.
Há também a Korn Ferry, com sede em Los Angeles, nos EUA, cujo software de recrutamento por inteligência artificial vasculha a internet em busca de possíveis candidatos para uma vaga de emprego.
Dessa maneira, as empresas não precisam esperar os melhores candidatos em potencial se candidatarem, mas podem buscar proativamente a pessoa que desejam para um cargo com mais facilidade.
Mas, afinal, que fim levou minha entrevista de emprego com a inteligência artificial? Não fui chamada para uma entrevista com um recrutador humano. Quem sabe ainda não estão procurando alguém para contratar para o cargo?
Fonte: BBC